16.1.08

O homem duplicado

De maneira misteriosa, o cérebro recebeu a ordem para descansar. Era chegada a hora que se preza de um lado e se teme do outro. Aquele momento que alma alguma que tenha pisado ou que pise nos solos arados ou artificialmente recobertos da Terra tem como escapar. Aquilo que os religiosos chamam de hora da unção final, o momento da iluminação, a transcendência da matéria, o inacabado porvir, a mistificação da crença. Sendo o primeiro a fechar as portas a qualquer tipo de pensamento, o órgão mestre desvaneceu-se como quem apaga uma lâmpada num quarto escuro. Mas as janelas permaneciam abertas, aquele par de olhos escancarados para um mundo que já não viam. A luz já não encontrava razão para entrar naqueles orifícios sem obstáculos, e apenas iluminavam o sangue que refreava-se pouco a pouco nas veias, mantendo ainda acalentado aquele corpo inerte. Mas as hemoglobinas já não carregavam oxigênio, e se o ainda fizessem, uma hora haveriam de desistir, soltar a última expiração, fechar os olhos, recostar na parede da veia mais próxima e também deixar-se estar. Vendo pela conseqüência o fato do sangue pouco a pouco refrear-se, retrocede-se à causa: o músculo pulsante, aquele cujas válvulas tem a função de tragar e bombear o rubro néctar por todo o corpo, já não lutava por resistir. A barreira que continha a tropa inimiga havia sido destruída e a ordem do QG central era clara: bater em retirada ou deixar-se abater. Amigas próximas do coração, praticamente a abraçar-lhe os batimentos já finados, as duas bolsas que antes recebiam das já também abatidas hemoglobinas o alimento de sua função, ainda insistiam numa batalha perdida, e pareciam chorar através de chiados que não se impunham a ouvido algum. Todos os microorganismos que compunham o cadáver recostado na poltrona da sala de estar cuja lareira iluminava o semblante sereno daquele que já não conhece razões para franzir-se, pareciam bailar num universo de ordens perfeitas. Bailavam os glóbulos brancos e vermelhos num minueto de passos duplos e despediam-se com um beijo de até logo, mesmo sabendo que a dança era a última e que o beijo também. Todos os fluídos, todos os hormônios, todos os agentes internos de proteção, crescimento e manutenção, todos os operários braçais de uma empresa bem sucedida, agora não viam outra saída a não ser retirar os chapéus e coletes sem se preocuparem em bater ponto. Pareciam de fato os soldados rendidos, os mártires de uma revolução eterna, interna e externa. Os pêlos da cabeça aos pés já não precisavam se preocupar em eriçar-se ou deixarem-se recostar na pele cujo frio ou calor já não se lhe imprimiam marcas. Os pés pareciam descansados por saberem-se dispensados da ingrata tarefa de carregarem para destinos desconhecidos essa multidão de seres que agora limita-se a boiar numa maré baixa. Ao espectador mais perspicaz não passaria desapercebida a pequena aura que parecia desprender-se do corpo, como a fumaça que se desgarra do gelo seco por ser ainda sua parte, e que baixava cada vez mais a temperatura, ou para um espectador ainda mais exigente, tornava-a igual à do ambiente em que se encontrava. Mas nem o mais Sherlockiano dos que visionavam a cena poderia notar a luz que se viu acima do corpo. Os religiosos chamariam de Espírito Santo, de Anjo, de Nirvana. Os céticos chamariam de eventualidade, já que tudo que não se crê, eventual o é. Os emotivos talvez o chamassem de ápice da libertação, do momento mais belo que se pode alcançar num plano enraizado nas rotas da colisão eterna. E assim um novo ele, o seu duplicado em forma, gestos e feição, subiu rumo à luz, que abraçava seu novo eu como a luz matinal que abraça a metade da humanidade do planeta, enquanto do outro lado sua luz apenas afana-lhe o rosto refletida num espelho que tenta rasgar as trevas da noite.