1.1.08

Ycuá Bolaños

Parte I

A manhã nascia quando, num quarteirão qualquer de um país qualquer, o som da campainha fez-se ecoar pelas paredes de uma casa qualquer, até entrar em ressonância com o tímpano da, nessas circunstâncias, embora que ainda num contexto outro seria também essa uma qualquer, doutora Clara Lemos. O torpor do brusco despertar, apesar do suave toque da campainha tradicional de duas notas musicais que se escuta nos lares do mundo inteiro, ainda não extirpou-se quando o primeiro pensamento do dia permitiu-se concluir, Deve ser Lídia, pensou Clara enquanto com esforço igualável a uma das provas hercúleas levantava uma pestana após a outra e preparava-se para levantar. Desceu um lance de escadas e chegou a porta. Era mesmo Lídia, a empregada da casa, quem chegara àquela 7h30 da manhã de um dia, como iniciado foi, qualquer. Aberta a porta e ditos os cumprimentos ocos mas necessários segundo a etiqueta, Clara Lemos novamente interagiu com a escadaria citada outrora, porém agora seguindo como o peixe o faz à piracema, no fluxo contrário ao natural, necessitando obviamente e redundantemente de um esforço que a pareceu ainda mais penoso à essa hora da manhã. Enquanto Lídia, que por ser agora apenas uma coadjuvante não mereceu ainda a honra de ter mencionado seu sobrenome, arrumava seus pertences junto a um cubículo e preparava-se para as tarefas as quais já conhece de cor e já não lhe imprimem uma marca diferente no rosto por nada de novo representarem, Clara entrava no banheiro e vencia as tarefas que já também de nada lhe eram estranhas - as do asseamento pessoal que todos os que por Deus tiveram privilégio de nascerem com posses suficientes se submetem diariamente e, ainda, diversas vezes por dia. Um tanto leviano seria aqui discorrer sobre os pormenores pelos quais passa Clara dentro do banheiro de azulejos brancos e talhados com flores em relevo, então de maior uso seria confirmar a qualidade de Doutora, e que agora temos tempo para narrar, Pediatra. Trabalhava a quinze minutos de casa, indo de automóvel particular, e até então, no auge dos seus também ineditamente mencionados aqui 43 anos, encontrava-se satisfeita com sua escolha profissional. Como sempre ocorre com todos que conhecemos, e como num ritual a ser seguido a cada nova aquisição de interpessoalidade, aos poucos vamos descobrindo também que nossa até então personagem principal da narrativa tem um marido, esse que acaba de entrar também no lavabo, com a cara amassada, com a barba por fazer, remelas que lhe saltam às vistas, e, segundo Clara, lindo como sempre. Um tanto bruto por não ter ainda tomado seu café, ou devido à excessiva intimidade e convivência que nos permitem burlar os ritos de comunicação usuais já apresentados entre Clara e Lídia, Vítor, esse era seu nome, não disse à sua esposa, Bom dia, como passou a noite - mas não o fez por mal - assim o concluiríamos se pudéssemos entrar em sua cabeça e ver os causadores de tão relapso comportamento. A vida de Vítor, não por menor importância ter em termos econômicos, sociais, ou até mesmo sob os olhos de um Deus que lhe observa como observa a todos nós, sua vida, dizíamos, em contraste à vida de Clara, ou até mesmo por nela se entrelaçar, não será esmiuçada. Basta-nos saber de sua cara amarrada e de sua barba, que a essa altura já encontra-se ralo abaixo. Nesse tanto discursar e tentar descobrir razões para mínimos comportamentos - mesmo sabendo que os mínimos são muitas vezes os mais visíveis - Clara já está vestida com seu paletó azul marinho e, à porta de casa, gritando, Vítor, estou saindo, e deixando ecoar depois pelas paredes da casa o som menos simpático do que as duas notas musicas que a fizeram despertar, o som da porta batendo e que, com tal intensidade o fez, que acordou também uma criança de no máximo oito anos cujo nome ainda nos é vedado o conhecimento, e a que tudo leva a crer, é filho do casal Lemos.

Parte II

A porta bateu e Vítor não tardou a sair também rumo ao seu trabalho. Lídia, que permanecia na cozinha lavando louças deixadas sujas à sua espera como se nelas estivessem etiquetas com seu nome destinadas, então subiu as escadas e entrou no quarto que ficava ao lado do quarto do casal de patrões. Na porta do quarto, em madeira pintada de azul com aviões por sobre as letras, o nome Lucas permanecia à altura média dos olhos de quem tencionava entrar no local. Lucas - pronto - descobrimos o nome do rapazinho. E era por esse nome que a empregada chamava, já em tons um tanto ameaçadores, dizendo que era hora de acordar. Os tons da voz, não entendam por mal, eram apenas os necessários para despertar uma criança que, apesar de uma porta ter sido batida numa casa cujas paredes parecem ter sido projetadas para triplicar os sons que nelas tocam, acordou e voltou a dormir com a facilidade com que se cai uma maçã de uma árvore. O menino esperneava e pedia mais cinco minutos, mas Lídia tinha razões suficientes para lhe colocar de pé, já que a escola é necessária pra quem quer ser alguém na vida, e, essa talvez seja a verdadeira razão de tanta pressa, seu emprego não podia correr riscos por causa de uma criança preguiçosa que se recusa a aprender o que em sua própria vida não lhe quiseram ensinar. O garoto demorou-se no banheiro menos tempo que seus pais já que seu corpo é menor e possui menos área para limpeza, ou porque o rapaz ainda não sentiu na pele as conseqüências de uma higiene mal feita e passa por ela sem grandes adornos. Já pronto com seu uniforme posto no lugar como o é na maioria das escolas, sua blusa branca com o brasão do colégio em seu peito esquerdo, bermuda azul com um friso branco nas laterais da coxa, meia branca e tênis preto, o guri tomava suco de laranja preparado por Lídia junto de uma torrada um tanto seca, quando ouviu a buzina do ônibus escolar. Saiu como o vento desviando de objetos, ainda que de alguns com não tanta eficácia, e desapareceu antes que a empregada tivesse chance de lhe mandar levar o resto da torrada para o horário de lanche entre aulas - mesmo sabendo que seria devorado no meio de uma lição mais tediosa. Lídia, agora sozinha em casa graças à confiança depositada em si por seus patrões, lava a última louça cuja imaginária etiqueta lhe endereçava a limpeza. Esse serviço concluído, tem bastante tempo até que lhe sujem novamente a porcelana e panelas, já que o horário de almoço da família é por volta de 14h30, apesar de uma ou outra exceção ao pequeno que chega do aprendizado com fome e por volta de 13h. No meio tempo arrumará os quartos que se encontram ainda lacrados e permeados pelo cheiro dos corpos que neles repousaram, trocando os lençóis que precisem ser trocados, varrendo a sujeira que lhe pareça desnecessária à paisagem, abrindo as janelas e deixando o sol e o ar fresco tomarem o lugar que lhes é de direito, e, depois de tudo isso, ainda passará no supermercado tendo em mãos a lista de mantimentos que a doutora lembrou-se de pôr em notas. Lídia Campos, que agora merece sobrenome e o título honorário de personagem principal, é uma mulher simples. Enquanto varre o chão, limpa, lava e passa, a moça morena, cujos 56 anos de mocidade resplandecem no semblante marcado pelas rugas de quem ganha a vida da sujeira dos outros, perde-se em pensamentos. Por vezes pensa no marido que sumiu, na filha que engravidou cedo demais, da sua própria gravidez precoce dessa menina que teve uma menina, pensa no que é, no que foi, no que poderia ter sido, e por fim, no que nunca será. Olha para a casa de tijolos bem talhados, de móveis anti-sépticos e de comidas extravagantes e deixa-se estar. Nesses pensamentos absorta, a mulher olha para a parede do quarto de casal e nota o relógio marcar 11h30. Como se um estalo tivesse em seu crânio sido acionado, ela apressa os movimentos, desce as escadas que olham por baixo de sua saia sem vergonha alguma por tudo verem por debaixo e não terem outra opção senão essa, e chega até a cozinha. Lá apanha um bloco de notas, a chave de casa, e sai não como o pequeno Lucas, mas também com uma desenvolta rapidez porta afora. Os passos ligeiros das pernas grossas tem o destino pré-determinado - vão para o supermercado comprar o que é necessário, e talvez até desnecessário, porém desejado pela patroa e sua família.

Parte III

O percurso de casa até o supermercado não era grande, mas a mente de Lídia Campos, concentrada em logo chegar, fez-lhe parecer maior o trajeto e menos velozes suas pernas. Chegou como chegaria independente da velocidade das pernas, e entrou no estabelecimento com tempo suficiente para gastar nessa tarefa que lhe apetece mais do que lavar e manter a casa tinindo, tarefa essa de comprar com o dinheiro dos outros. Comprar o que de certo não é para si, mas cujo simples ato de o fazer traz alforria pra ela que vê-se obrigada a contar e recontar notas pequenas antes de pensar em gastá-las. Apossou-se de um carrinho desses metálicos que todo mercado que se preze tem à sua porta e, antes de se dirigir para qualquer uma seção, consultou com alguma dificuldade o pequeno bloco de notas que trazia consigo. Em letras suficientemente cursivas, mas que não deixam-se desvendar os segredos por completo, talvez pela autora de tal lista de compras ser médica, ou talvez pela falta de estudo da destinatária da lista, os itens enumaravam-se: leite integral, queijo coalho, picanha maturada, e mais incontáveis futuras posses cuja família Lemos tenciona obter. A hora não é das mais propícias para compras, o local está cheio de pessoas com mesmas intenções, umas com mais pressa do que outras, umas empregadas outras patroas, uns homens outras mulheres, mas todos ali num interesse comum. As compras prolongam-se e o relógio de pulso de Lídia, desses que apesar de rudemente fabricados e polidos cumprem honrosamente com sua função, essa que é de informar as horas, marca enfim 12h20. Dentro em breve o menino Lucas estará à porta de casa e ela precisa retornar ligeiramente para o lar que não lhe pertence, com as compras que não lhe pertencem, pelo filho que não veio de seu ventre e nem seu é. A mulher então encosta seu pequeno carro de compras, que nem nos cabe dizer também não é seu, na fila que, apesar de não ser a menor em tamanho, parece ter um fluxo mais ágil. Nesse meio tempo de abstração temporal que é o esperar numa fila, ganhamos espaço para descrever o supermercado. Trinta metros separam o chão do teto, e por cem metros de largura estende-se. Como tudo que hoje em dia mais de um vê-se obrigado a ser para poder sobreviver, tanto um brasileiro que fala inglês, um músico advogado, uma médica cozinheira, ou até mesmo um gato carinhoso, o mercado tem uma seção destinada à restaurantes. Assim a movimentação do local aumenta nos horários de almoço, e na lógica marqueteira e até um tanto maquiavélica dos que guiam negócios, acabam por comprar algo por simples gulodice visual. E é justo aí, no que não era pra ser mas desdobra-se na existência, no corpo estranho, no que é exceção, como tudo que se vale narrar na verdade o é, que ocorre o que precisava ocorrer para esse relato todo fazer sentido. Não se sabe ao certo a causa, até mesmo por que se fosse possível seu prévio conhecimento, nada do que viria a ocorrer de fato ocorreria, e se alguém o soube foi atrasado, e esse alguém já não existe para nos contar com suas palavras, Foi assim, vi com esses olhos que a terra há de comer - se a terra já os come nesse momento - por infeliz ironia do palavreado. Numa das cozinhas de um dos restaurantes, suspeita-se porém, que havia um vazamento de gás, e essa hipótese talvez venha a desmentir o que pressupomos agora mesmo, e que qualquer um que tivesse narinas e o hábito de usá-las para sentir cheiros, sentiria o vazamento de tão grande quantidade de gás, quantidade essa que, ao farfalhar de alguma chama, faísca, quem sabe até mesmo o cigarro de alguém, fez detonar uma explosão.


Parte IV

No momento da explosão, por volta de 12h30, Lídia havia acabado de passar pelo caixa e estava se dirigindo para a porta com destino à rua, e mais tarde, à casa em que trabalha. Mas como todo ser humano tende a reagir de forma semelhante em situações extremas - salve abençoadas ou amaldiçoadas exceções, cujos exemplos não tardaremos a conhecer, a mulher já com compras em mãos, ao ouvir a explosão, virou-se para trás e quedou-se paralisada por alguns segundos, quiçá minutos, já que o tempo em situações como essa torna-se algo maleável como uma camisa de lã. Primeiro houve o baque seco da explosão, depois, em um crescendo digno da Filarmônica de Londres, os gritos começaram a ecoar dentro do estabelecimento. Alguns cujo reflexo, reação, e taxa de adrenalina os fizeram reagir antes que Lídia, conseguiram sair correndo pela porta. Cabe dizer que a explosão foi grande, mas não o suficiente para matar a todos, nem muito menos um vinte avos dos que se encontram ali, o que houve de terrível não foi o fato, e sim, como sempre, a sua conseqüência - e essa foi o inevitável incêndio. Alguns, atordoados com suas compras ainda não pagas nas mãos, mãos essas cuja taxa de adrenalina havia se elevado à tal nível que não conseguiriam largar uma cesta com produtos ou o que quer que fosse durante uma hora, correram supermercado afora sem pagar suas pretensas aquisições. Nisso fez-se ouvir apenas para alguns pobres bastardos uma ordem cujo emissor, talvez por nervosismo, talvez por pensar que o incêndio não se alastraria, por inocência, mas, antes de mais anda por demasiada humanidade, até hoje é desconhecido. Quando Lídia conseguiu reagir e sair do estado de choque, virou-se e seus olhos não puderam crer quando viram os seguranças fechando o mais rápido que podiam todas as portas do supermercado, enquanto alguns predestinados ainda conseguiam deixar o lugar a salvo. A ordem que circulara pelos walkie-talkies dos seguranças era clara, e esses pobres seres cujo destino é não pensar por suas cabeças, obedeciam como cegos entregues às mãos de um desconhecido ao atravessar um sinal supostamente vermelho. Lídia correu e já encontrou as portas fechadas, as pessoas amontoadas por sobre seguranças que só repetiam um mesmo chavão, possivelmente esse dito também pelo walkie talkie, Senhores, pedimos que se acalmem, retornem aos caixas, efetuem os pagamentos e depois poderemos abrir os portões. As palavras desconexas revoltavam quem ouvia, mas quis o destino que tudo fosse como foi. As razões dos comportamentos humanos, mais complicadas que analisar o porquê de Vítor não ter dado bom dia à sua mulher, aqui encontravam-se emaranhadas, entrelaçadas, confusas. Não seria possível dizer porquê Lídia, já com as compras pagas, não conseguiu dizer que já as havia pago, e que merecia sair. Não se pode dizer o que se passava na cabeça de quem mandou a ordem de fechar os portões do mercado enquanto o mesmo está em chamas, passaria pela cabeça o lucro do dia, seu salário, quem sabe algo mais generoso, o salário de todos os empregados do supermercado fugindo porta a fora. E nas cabeças dos seguranças que não permitiam a saída de ninguém, o que se terá passado se é que nessas cabeças permitiu-se algum pensamento, se pensavam também no seu salário, na sua esposa, nos seus filhos que precisam de comida e por isso permanecem nesse emprego, talvez na simples, moral e ética obrigação de cumprir ordens de superiores. E na força conjunta, na grande massa dos que permaneciam cativos, o que se terá passado na consciência coletiva dos oprimidos no local, por que mais de quatrocentas pessoas teriam se permitido aguardar a iminente morte por causa de umas dezenas de guardas, se os fossem tantos. Teriam pensado na obrigação de cumprir o que alguém de uniforme lhe impõe, ou terão simplesmente perdido argumentos diante de fatos que, de tão inconcebíveis, não nos entram ao cérebro.


Parte V

Dos exemplos de amaldiçoadas exceções dos comportamentos humanos já tivemos conhecimento no que tange aos seguranças e ao superior que lhes dirigiu a famigerada ordem. Mas a moeda não estaria com as medidas justas, no termo literal de justeza, se não houvesse também o outro lado. O exemplo da abençoada exceção, seguindo o exemplo de seu oposto, também veio de um anônimo que, superando os hormonais problemas de raciocínio conseguiu ligar para os bombeiros. Não que a tragédia e as vítimas já não tivessem sido feitas, mas o que se pode melhorar numa situação extrema já é abençoado. Dez minutos após o telefonema e cinquenta cadávares a mais, os bombeiros chegaram e também os olhos deles puderam perceber que havia de fato pessoas impedindo a saída do supermercado. Os bombeiros, ao bradarem a ordem de abrir as portas, conseguiram, talvez por superioridade de uniforme, talvez porque quando a insanidade reina, uma luz de razão torna-se um verdadeiro astro-rei, mas conseguiram, como dizíamos, abrir uma pequena porta na compreensão dos seguranças que por si só já deviam estar mareados pela fumaça que havia tomado todo o local, e enfim liberaram a saída. Alguns dos que apoiavam-se nos vidros caíram e por ali ficaram, talvez tenham sentido as pisadas que lhes imprimiram, e talvez por isso tenham vindo a falecer, ou, queira Deus, tenham morrido antes disso. Todos cobertos de cinzas, seguiam o caminho da rua ancorados por homens em uniformes de bombeiros, e, tomando novamente o exemplo da piracema, alguns desses mesmos homems bombeiros, heróis quem sabe em suas cabeças, entravam no supermercado. Um deles, cujo destino havia predestinado - à revelia de sua vontade - a vir até esse mercado, entrar, e encontrar, na seção de frutas, um pequenino bebê ainda com vida, passou pelo cadáver de Lídia e nem percebeu.